segunda-feira, 14 de março de 2011

OS PARADIGMAS PSICOLÓGICOS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR


Nenhuma das matrizes disciplinares da Psicologia foi criada com o intuito de responder a questões formuladas no terreno da educação em geral e, muito menos, no campo específico da educação escolar. A Psicanálise constitui a demonstração mais óbvia dessa afirmação, pois como se sabe o paradigma freudiano foi desenvolvido para atender a demandas oriundas da clínica psicológica, sendo seu propósito inicial encontrar um meio eficiente para curar neuroses (cf. Freud, 1978). Quanto ao Comportamentalismo, tratou-se originalmente de uma iniciativa para construir uma teoria geral que contemplasse as leis de regularidade e uniformidade do comportamento humano, em que estivessem descritas as relações entre as respostas emitidas por um organismo e os estímulos ambientais (cf. Skinner, 1967).
Sobre a teoria piagetiana, é preciso lembrar que sua problemática primeira encontrava-se vinculada à área da epistemologia: o propósito de Piaget era "abordar o estudo do conhecimento através de uma epistemologia de natureza biológica", o que se mostrou inviável por intermédio do uso exclusivo dos métodos da própria Filosofia. Assim, dada a necessidade de bases empíricas que permitissem "uma ponte sólida entre a biologia e a epistemologia", Piaget foi em busca da Psicologia (Coll & Gillièron, 1987, p.15). Toda a psicologia piagetiana constitui, a bem da verdade, um conjunto de teses formuladas para responder a questões relacionadas com a origem e o desenvolvimento da capacidade cognitiva do ser humano, e, mais amplamente, para explicar como nasce e evolui a competência do indivíduo para apreender abstratamente o mundo que o cerca.
É certo que alguns dos criadores dos paradigmas aqui analisados envolveram-se diretamente com os problemas da educação, aplicando suas formulações a "novas áreas de interesse", como diria Kuhn, procedendo deste modo, portanto, na condição de cientistas normais. Com eles começaram, então, as transposições de suas formulações paradigmáticas para o âmbito da escola. O caso de Skinner é exemplar, pois de certos princípios comportamentalistas decorrem sugestões de elevado interesse para organizar o processo de ensino e aprendizagem escolar. Uma das teses fundamentais desse paradigmadiz que o organismo – seja ele animal inferior ou superior – responde a estímulos ambientais, o que permite ver o comportamento como resultado de arranjos no meio em que se localiza o indivíduo. O Comportamentalismo ensina como instalar respostas novas e modificar padrões de respostas já existentes, o que o torna, em suma, um paradigma facilmente aplicável à educação. A tal ponto que o próprio Skinner, em seu livro Tecnologia do Ensino (Skinner, 1972) elaborou propostas bem delineadas para o ambiente escolar, como o "ensino programado" e o emprego de "máquinas de ensinar".
Assim, se é certo que os paradigmas psicológicos não nasceram para resolver problemas educacionais em geral ou problemas específicos da educação escolar, é preciso reconhecer, também, que toda e qualquer utilização educacional dos saberes oriundos da Psicologia é passível de discussão. Além disso, quando a Pedagogia tenta apossar-se dos conhecimentos científicos da Psicologia, pode fazê-lo sob a égide de orientações pedagógicas as mais diversas. Conseqüentemente, torna-se muito difícil, arriscado e, em alguns casos, leviano, vincular uma vertente do pensamento educacional a conceitos extraídos de uma teoria psicológica, como se algum saber deste terreno fosse responsável exclusivo pelas práticas contidas naquele.
No entanto, é preciso admitir que alguns paradigmas contêm formulações que implicam reflexões problematizadoras e soluções de interesse inegável para os educadores. Mas, desenvolvida como atividade de ciência normal, esta empresa não se confunde com o estabelecimento das teses paradigmáticas, ainda que o fundador do paradigma tenha se envolvido pessoalmente nela. Para ficar no exemplo dado, as sugestões de Skinner quanto ao modo de organizar a educação escolar não são as únicas possíveis ou as únicas que devam ser consideradas pelos adeptos de seu paradigma. A tese de que o comportamento é algo que se pode instalar, controlar e modificar, sem levar em conta supostos fatores subjetivos, constitui uma idéia a ser necessariamente aceita pelos seguidores dessa corrente, mas o mesmo não se dá quando se trata de organizar o processo de ensino e aprendizagem. Ao admitir a noção de que o comportamento do educando é passível de controle por meio dos estímulos fornecidos em sala de aula, o professor torna-se comportamentalista, mas não se sente obrigado a concordar que a escola deva ser composta por alunos diante de máquinas de ensinar.
Pode-se chegar a semelhante conclusão tomando o caso de Freud, cujas teses a respeito da sexualidade infantil enfatizaram ser a constituição do ego um resultado do combate entre as pulsões do id e as restrições do superego, representante internalizado das imposições morais transmitidas, inicialmente, pela educação familiar e, mais adiante, pelos educadores profissionais. A teoria freudiana, ao versar sobre o desenvolvimento da personalidade, oferecia certa margem de reflexão a respeito dos procedimentos educacionais, e o próprio Freud o fez, em alguns textos e passagens de sua obra. Não sendo adepto, entretanto, de concepções ambientalistas, concluiu que pouco poderia ser conseguido por pais e professores, uma vez que o inconsciente é um território insondável. No final da vida, tornou-se totalmente descrente da possibilidade de a Psicanálise contribuir para a educação de crianças e jovens, quer na escola, quer fora dela (cf. Kupfer, 1992).
Suas opiniões neste terreno não impediram que muitos cientistas normais de orientação psicanalítica tratassem de fazer o que o mestre considerava impossível. O exemplo mais categórico foi sua própria filha, Anna Freud, com Psicanálise para Pedagogos (Freud, 1974). Mais recentemente, estudiosos, como Georges Mauco, têm admitido que a concepção freudiana não pode ser entendida como uma ciência psicológica, propriamente, "mas um método de investigação no domínio do simbolismo inconsciente", e que reduzi-la a "uma pedagogia apressada ou a um culturalismo simplista" seria inadequado (Mauco, s.d., p. 192). Mauco admite, entretanto, que a Psicanálise pode ser útil aos educadores, se não enquanto método de interpretação, cuja utilidade é evidentemente limitada aos domínios do consultório, ao menos como fonte para a compreensão do desenvolvimento psíquico e afetivo do ser humano; ao elucidar as relações da criança com a família, do educando com o educador e a economia psíquica do profissional da educação, a Psicanálise pode fornecer ao professor condições para lidar com indivíduos em situação de aprendizagem, capacitando-o para o melhor desempenho de suas funções próprias.
Impossibilitada de inspirar métodos pedagógicos, mas apta a sustentar uma nova visão dos processos educacionais, a Psicanálise pode ser útil ao questionamento dos vínculos de autoridade na sala de aula em abordagens pedagógicas avessas aos moldes tradicionalistas. Idéia semelhante é defendida por Maria Cristina Kupfer, para quem não é possível criar uma metodologia pedagógica fundamentada na Psicanálise porque todo método implica certo grau de ordenação e previsibilidade, algo inimaginável numa teoria que aceite a noção de inconsciente – o lugar do imponderável, do imprevisto, daquilo que escapa à linguagem da razão. À imagem do psicoterapeuta, o educador inspirado na Psicanálise deve renunciar ao controle intensivo sobre seus educandos; no processo de avaliação da aprendizagem, por exemplo, tem apenas uma vaga imagem do que pode estar ocorrendo com o aluno, pois não tem acesso direto à repercussão dos conteúdos escolares no inconsciente do aprendiz. Mais ainda, não tem como saber em que medida a relação transferencial estabelecida entre ele e o educando está interferindo no trabalho pedagógico. Assim, Kupfer conclui:
Pode-se dizer, por isso, que a Psicanálise pode transmitir ao educador (e não à Pedagogia, como um todo instituído) uma ética, um modo de ver e de entender sua prática educativa. É um saber que pode gerar, dependendo, naturalmente, das possibilidades subjetivas de cada educador, uma posição, uma filosofia de trabalho. Pode contribuir, em igualdade de condições com diversas outras disciplinas, como a Antropologia, ou a Filosofia, para formar seu pensamento. Cessa aí, no entanto, a atuação da Psicanálise. Nada mais se pode esperar dela, caso se queira ser coerente com aquilo que se constituiu essencialmente: a aventura freudiana. (Kupfer, 1992, p.97).
Quanto a Piaget, vale considerar aqui o depoimento colhido por Mário Sérgio Vasconcelos em que Therezinha Rey relata as impressões do pesquisador genebrino sobre sua visita ao Brasil, no ano de 1949. Piaget teria ficado descontente por ter sido abordado por pessoas cujo interesse exclusivo era a Educação, e por não terem ocorrido, como ele desejava, "debates mais profundos sobre biologia e epistemologia" (Vasconcelos, 1996, p.58). Embora estes fossem os interesses prioritários de Piaget, alguns textos sobre educação escolar foram por ele produzidos, sob a motivação dos encargos que assumiu junto ao "Bureau International d’Education", entre 1929 e 1967, e à Unesco, de 1946 a 1980 (idem, p. 53-5). Seus escritos educacionais continham três pontos comuns:
a defesa dos métodos ativos, a revelação dos resultados da psicologia genética como corroboradores dos princípios da Escola Ativa e a proposta de trabalho cooperativo, como estratégia pedagógica para o desenvolvimento do pensamento experimental, da razão, da autonomia e dos sentimentos de solidariedade. (idem, p.59)
As formulações paradigmáticas de Piaget não foram transpostas, por ele mesmo, para a sala de aula; suas idéias permitiram-lhe distinguir entre diversas abordagens educacionais já existentes, tornando-se crítico dos métodos tradicionais de ensino e defensor da renovação educacional. Além disso, autorizou certos esforços destinados a essa transposição, como é o caso da obra de Hans Aebli, datada dos anos cinqüenta e publicada no Brasil com o título Didática Psicológica. Aplicação à Didática da Psicologia de Jean Piaget (Aebli, 1971).
Das teses piagetianas, entretanto, têm surgido diversas possibilidades de ação, que variam quanto ao modo de situar o valor dos conteúdos das matérias escolares, o papel do professor na sala de aula, os instrumentos de avaliação, enfim, sobre todos os componentes da situação de ensino e aprendizagem. César Coll, ao analisar algumas dessas vertentes, considera a existência de duas grandes interpretações. A primeira valoriza os aspectos endógenos do processo de construção do conhecimento e enfatiza a atividade livre e espontânea do aluno, o que impõe à escola criar ambientes estimulantes que permitam ao aprendiz desenvolver seu potencial, à sua maneira e em seu próprio ritmo. A segunda interpretação destaca o aspecto interacionista das idéias piagetianas, defendendo que a intervenção pedagógica deve consistir na elaboração de situações que permitam certo grau ótimo de desequilíbrio entre os esquemas de assimilação do educando e o objeto a ser assimilado (Coll, 1987, p.188-9).
Na primeira vertente, caracterizada como "interpretação construtivista radical do processo de ensino-aprendizagem", o desenvolvimento operatório torna-se o objetivo único e exclusivo da educação, conferindo à Epistemologia Genética o papel de "uma espécie de psicologia aplicada à educação", disciplina norteadora do processo educacional. Na segunda, chamada "desajuste ótimo", a ênfase desloca-se para a compreensão do processo educacional e suas questões específicas, como o valor social e cultural dos conteúdos escolares e da prática pedagógica, deixando aos saberes oriundos da Psicologia Genética a tarefa de contribuir para elaborar mais adequadamente os conhecimentos a serem ensinados – por exemplo, no trabalho de seleção e ordenamento destes conhecimentos de acordo com as diferentes etapas do desenvolvimento cognitivo dos educandos.
Assim, num extremo o paradigma piagetiano é empregado para constituir um "pólo psicologizante" em que os objetivos educacionais subordinam-se ao desenvolvimento individual; no outro, sustenta a elaboração de instrumentos de análise dos componentes psicológicos da educação, renunciando à tentação de reduzir os fenômenos escolares ao desenvolvimento operatório.

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